Uma conversa com Herman Desmet

Em uma típica manhã cinzenta de dezembro na Bélgica, o fotógrafo e ultramaratonista Herman Desmet sente um frio na barriga enquanto os dedos pairam sobre o teclado do computador, prestes a submeter sua inscrição para o Ultra-Trail du Mont-Blanc (UTMB) — uma extenuante jornada de 174 quilômetros pelos Alpes da França, Itália e Suíça. A prestigiada corrida de trail running se tornou o objetivo máximo para corredores desse estilo, o equivalente à maratona de Boston no mundo do trail. Mas, como milhares de outros corredores pelo mundo, os objetivos e ambições de Herman dependiam precariamente da sorte em um sistema de loteria.

Estimulado por um bom amigo e pela perspectiva de uma aventura única na vida, Desmet passou os últimos dois anos completando corridas qualificatórias e acumulando os preciosos “tokens” do UTMB necessários para ter uma chance de garantir sua inscrição. Cada linha de chegada cruzada e cada ultra-distância completada representava tanto um triunfo pessoal quanto um passo a mais rumo ao tão desejado número de peito no UTMB.

As semanas que antecederam o anúncio da loteria foram como viver em um limbo peculiar. Herman se pegava planejando treinamentos que talvez nunca precisasse, consultando mapas topográficos de uma corrida que poderia não correr tão cedo e sonhando com trilhas alpinas que talvez permanecessem apenas isso — sonhos.

Então, em um dia comum de janeiro, tudo mudou. Seu objetivo no UTMB se tornou real. A notificação chegou à sua caixa de entrada: “Parabéns! Você foi aceito na edição de 2024 do UTMB.” Herman leu a mensagem três vezes. A partir daquele momento, seu ano ganharia uma nova órbita — blocos de treinamento, férias, outras corridas, tudo giraria em torno daqueles dias fatídicos de agosto, quando ele se juntaria à lendária procissão de corredores de trail pelo coração de Chamonix, França, até os braços acolhedores dos Alpes.

Com sete meses para se transformar em um atleta pronto para o UTMB, Herman abordou o treinamento com atenção meticulosa. Sua primeira decisão foi continuar se orientando sozinho. Equilibrando compromissos de trabalho e família, ele considera desafiador e estressante prestar contas a um treinador.

Sem um treinador para se apoiar, ele se tornou o próprio arquiteto do sofrimento, desenhando seu próprio plano rumo ao sucesso. Desmet imprimiu um calendário anual e marcou as corridas que planejava disputar até o UTMB. Em seguida, traçou suas metas semanais de quilometragem.

“Normalmente, treino em blocos de três semanas, seguidas por uma semana mais leve, e depois repito o ciclo”, explica. “Com a vida corrida, não consigo seguir horários rígidos de treino, tipo longão todo domingo. Então, faço tudo semana a semana. Procuro encaixar pelo menos uma ou duas corridas longas (15–30 km) por semana, junto com uma sessão de velocidade — como 3x15 minutos rápido, 10x200 m de tiros, ou um treino intervalado de 8-4-2-1 minutos.”

O plano dele incluía dois momentos cruciais: uma prova de 85 quilômetros em maio para testar sua resistência, e uma “peregrinação” às montanhas austríacas em julho, onde treinaria os intermináveis sobe-e-desce que definiriam sua experiência no UTMB. Fora essa prova de 85 km, o plano de treinos não incluía muito volume. Diferente de muitos de seus colegas ultrarunners que juram por corridas de três dígitos, a filosofia de treino de Herman é mais pragmática. “Não faz sentido correr 80 ou 100 km durante um ciclo de treino”, explica ele. “O dano muscular é grande demais, e o tempo de recuperação consome dias valiosos de treino.”

O ato de equilibrar tudo

Qualquer ciclo de treino para um grande objetivo exige um delicado equilíbrio entre treino e recuperação. Mas, como costuma acontecer com atletas amadores, a vida vai além de correr, comer e dormir. O plano de Herman também precisava levar em conta as demandas de sua carreira profissional como fotógrafo e suas responsabilidades como pai solteiro. Cada aspecto de sua vida exigia uma orquestração cuidadosa — prazos precisavam ser cumpridos, momentos em família preservados, e, de alguma forma, entre tudo isso, ele precisava encontrar horas para se transformar em um atleta capaz de conquistar uma das corridas de montanha mais exigentes do mundo.

“Quando as crianças estão comigo, eu encaixo algumas milhas depois de deixá-las na escola ou saio para corridas à noite enquanto elas assistem TV. Às vezes, nem percebem que eu saí”, ele ri. “Com crianças mais novas, esse tipo de treino seria impossível. Mas agora elas estão maiores — a mais velha tem 15 anos —, e na verdade isso acabou se tornando algo que compartilhamos.”

Herman encontrou, inclusive, uma alegria inesperada em como sua paixão pelo ultrarunning despertou a curiosidade dos filhos. Os dois mais novos às vezes o acompanham em corridas leves. Outras vezes, se tornam sua equipe de filmagem improvisada, seguindo de bicicleta com câmeras na mão, ajudando o pai a capturar conteúdo para seu crescente Instagram. “Quando deixo eles brincarem com o drone”, ele ri, “de repente eles ficam super animados para vir comigo. Virou uma maneira maravilhosa de motivá-los a se manterem ativos enquanto passamos tempo juntos.”
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Tornando-se um ultramaratonista

Hoje em dia, as longas corridas e treinos levam Herman para o ar livre e para as montanhas, mas sua introdução ao esporte aconteceu na previsível pista de atletismo. No início dos vinte anos, ele costumava se juntar a um grupo de corredores próximos, dando voltas na pista local duas ou três noites por semana. Na época, sua prova principal era a icônica corrida de 20 quilômetros de Bruxelas, uma das mais importantes da Bélgica. “Por três meses, tudo girava em torno dessa prova. No resto do ano, eu corria distâncias menores, como 5 km ou 10 km.”

A ironia não passa despercebida para Herman. O homem que hoje encara correr noites inteiras nas montanhas, antes encontrava prazer em dar voltas sem fim em uma pista de 400 metros. “Eu só gostava de treinar com meus amigos na pista. Era um grupo legal e tínhamos um bom treinador. Os outros eram muito melhores e mais rápidos do que eu, mas isso me motivava.”

Desde aqueles primeiros dias na pista, Herman nunca parou de correr. Mesmo naquela época, atraído pela natureza, ele muitas vezes corria por uma floresta próxima. “Naquela época, a gente simplesmente chamava de correr. Hoje é mais chique chamar de trail running”, ele brinca.

Pouco a pouco, a corrida em trilhas se tornou sua prioridade. “Seis ou sete anos atrás, eu tinha um trabalho muito puxado, então comecei a correr para encontrar paz e descanso”, admite. Esses momentos na natureza permitiam que ele relaxasse e se reequilibrasse. “Algumas pessoas fazem yoga ou meditação; eu corro por meia hora ou uma hora e meu nível de estresse simplesmente desaparece.”

Gradualmente, essas corridas restauradoras evoluíram para algo mais ambicioso. As corridas ficaram mais longas e os percursos mais desafiadores. “Eu gosto muito de trail running. Lá fora é tranquilo e você se conecta com a natureza. Durante corridas muito longas, minha mente simplesmente esvazia de um jeito que, quando volto para casa, sinto como se estivesse voltando de umas longas férias. Me sinto muito relaxado”, admite.

Perseguindo grandes objetivos

Não demorou para que as ultramaratonas se tornassem o objetivo de Herman, com as distâncias ficando cada vez maiores. “Quando comecei a fazer corridas de trail mais sérias, há cinco anos, parecia uma aventura. Depois de cada prova, eu me via querendo ir mais longe, para ver do que meu corpo era capaz. Então, gradualmente, aumentei a distância de 15 para 30, 42, 60, 80, 100, 120, 160 e, finalmente, 177 km.”

Treinando para ultramaratonas

Treinar para corridas de ultra resistência exige muito mais do que acumular quilômetros. Os treinos desenvolvem resistência, a nutrição precisa alimenta o desempenho e o condicionamento mental forja resiliência. O sucesso vem de dominar todos esses aspectos, incluindo a recuperação. Antes da UTMB, uma preocupação central de Herman era desenvolver a capacidade de enfrentar longos períodos de subidas íngremes. Claro, treinar assim na Bélgica não é fácil. As modestas colinas de seu país natal simplesmente não eram suficientes. Eventualmente, ele fazia viagens ao sul, para regiões de relevo mais acentuado, enfrentando longas corridas em terrenos acidentados. Mas ainda não era suficiente. Ele precisava ganhar mais força nas subidas.

Para complementar seu treinamento, decidiu se matricular em uma academia local e incorporar uma sessão peculiar ao seu plano: o stepmill, uma máquina de cardio que simula a ação de subir escadas. "Era tão chato", ele ri, "que eu precisava ouvir podcasts só para aguentar aquelas sessões."

Mesmo assim, Herman reconheceu o valor de se submeter ao grind implacável do “dispositivo de tortura”, como ele o chama carinhosamente. "Quando voltava para os trilhos no sul da Bélgica, eu realmente sentia a diferença. Colinas que antes exigiam caminhada, agora eu conseguia correr com facilidade.” Por mais monótonas que parecessem, aquelas sessões de academia eram um mal necessário — e funcionaram. Esses treinos também o ajudaram a subir os 97 metros da Torre de São Rombaldo, em Mechelen, em tempo recorde.

Durante todo o ciclo de treinamento, Herman manteve um foco inabalável, impulsionado pelo conhecimento de que os desafios físicos da UTMB seriam apenas metade da batalha. À medida que as semanas se aproximavam da linha de largada, Herman aumentou a intensidade, forçando o corpo a se adaptar às exigências únicas da corrida. Sessões longas à noite na floresta se tornaram rotina, seus músculos e mente aprendendo a funcionar sob a luz da lanterna e após um dia cansativo.

Para atletas não profissionais, completar a UTMB exige correr por várias noites sem dormir. Nas duas semanas finais antes da prova, Herman se dedicou a maximizar o descanso e a recuperação, buscando acumular o máximo possível de sono. "O objetivo era cruzar a linha em Chamonix o mais descansado possível", diz ele. "Eu sabia que o desgaste físico seria enorme, então precisava acumular sono e recuperação." Esses preciosos dias de relativa inatividade permitiram que seus músculos fatigados se regenerassem e que sua mente encontrasse um raro momento de calmaria antes da tempestade que se aproximava.

Linha de chegada

Sete meses exaustivos de preparação culminaram em um momento que ficaria para sempre na memória de Herman Desmet: cruzar a linha de chegada em Chamonix após 42 horas, 38 minutos e 49 segundos de movimento contínuo pelos Alpes. Em uma edição da UTMB marcada por calor extremo, que forçou diversos corredores a abandonar seus sonhos no meio da prova, a determinação inabalável de Herman o levou a concluir a maior aventura de corrida de sua vida.

Fiel à sua veia artística, Herman não se contentou apenas em vivenciar a jornada — ele a registrou, documentando cada triunfo e cada dificuldade ao longo do caminho. O filme resultante, agora disponível em seu canal no YouTube, é um testemunho da incrível busca por metas que pareciam inimagináveis.

No entanto, alcançar a linha de chegada em Chamonix conta apenas uma fração da história. Herman já está planejando novos desafios. O próximo ano promete mais um capítulo em sua odisseia pelas ultras. Ele pretende se testar na Isle of Wight Race, uma corrida exaustiva de 106 quilômetros pelo terreno diverso da ilha. Em seguida, uma aventura de verão aguarda na Áustria, onde ele pretende medir forças no KAT100, uma árdua travessia montanhosa de 173 quilômetros, que servirá como mais um degrau em sua crescente trajetória no ultra trail.

Acompanhe as aventuras de Herman em corrida de trilha e fotografia no Instagram @shakemyview e em seu canal no YouTube.

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