O que você pergunta a alguém que acabou de correr mais de 3.000 km em apenas um mês? Acho que a primeira pergunta é óbvia: e as pernas?
“Bem. Fiz algumas corridas curtas, cerca de 10 km. Me sinto lento e cansado, mas é bom estar correndo”, responde o ultramaratonista e embaixador da Polar, Karel Sabbe, de sua casa na Bélgica, após mais um dia em seu consultório odontológico, seu trabalho diário.
Mas, é claro, ele já está correndo de novo.
Durante a maior parte da última década, Karel Sabbe esteve lá fora—colocando um pé à frente do outro, dia após dia, em busca de recordes de velocidade em algumas das trilhas mais famosas do mundo. O que começou como uma paixão rapidamente se transformou em algo muito maior: uma busca incansável pelo impossível. Ao longo do caminho, ele gravou seu nome no mundo do ultrarunning, estabelecendo múltiplos FKTs (fastest known times – tempos mais rápidos conhecidos) em algumas das trilhas mais desafiadoras do planeta e se tornando lendário como o 17º finalizador da infame Barkley Marathons—uma corrida tão brutal que apenas alguns corredores conseguiram concluí-la em quase quatro décadas.
Para 2025, Sabbe tinha um grande objetivo: percorrer a trilha Te Araroa, na Nova Zelândia, mais rápido do que qualquer pessoa antes dele. Para isso, o desafio era correr 1.898 milhas (3.054 km) em pouco mais de um mês. O recorde anterior, estabelecido por George Henderson no verão de 2020, era de 49 dias, 14 horas e 27 minutos.
Karel Sabbe não é estranho a jornadas de um mês que testam os limites do corpo e da mente. Em 2023, ele enfrentou uma das trilhas de longa distância mais icônicas do planeta—o Pacific Crest Trail—e não apenas completou, mas voou por ela. Com mais de 4.200 km do México ao Canadá, o PCT atravessa desertos escaldantes, regiões alpinas e intermináveis passagens montanhosas. A maioria dos caminhantes leva meses para concluir a trilha. Karel fez em apenas 46 dias, 12 horas e 50 minutos—estabelecendo um novo FKT e redefinindo o que é humanamente possível na trilha. Não foi apenas uma corrida; foi uma aula magistral de resiliência, planejamento e determinação.
Dessa vez, a Nova Zelândia trouxe um desafio completamente diferente—uma aventura incrível que o levaria de volta ao lugar que despertou seu amor pelas distâncias extremas. Estendendo-se por todo o comprimento do país, a trilha Te Araroa mostra a Nova Zelândia em toda sua beleza bruta e oferece tudo o que a Mãe Natureza (e a vida moderna) pode lançar a um corredor: passagens montanhosas acidentadas, travessias de rios profundos, cordilheiras íngremes, florestas densas, campos abertos e até ruas de cidades movimentadas.
Um lar longe de casa
Por mais distante que esteja de casa, a Nova Zelândia ocupa um lugar especial no coração de Karel Sabbe. Foi quase uma década atrás, quando ele chegou lá pela primeira vez—não para quebrar recordes, mas para se afastar do barulho da vida cotidiana na Bélgica. Após terminar a universidade, ele precisava de espaço, tanto físico quanto mental. Então, fez as malas e passou seis meses caminhando, explorando e vagando pelas paisagens selvagens da Nova Zelândia, procurando clareza sobre o que fazer a seguir.
O que ele encontrou foi mais do que vistas deslumbrantes e trilhas tranquilas—descobriu o poder curativo da aventura. Caminhadas e corridas de longa distância, natureza e acampamentos tornaram-se algo fixo em sua vida. A beleza crua do país deixou uma marca profunda nele, e não demorou muito para que sentisse o chamado de voltar. Essa segunda viagem? Foi quando ele realmente se apaixonou pelas ultradistâncias. A Nova Zelândia não apenas ofereceu paz—ela ajudou a moldar o corredor que ele se tornaria.
Ele retornou em 2015 para competir no icônico Coast to Coast—o lendário desafio multiesportivo da Nova Zelândia, onde competidores atravessam o país de bicicleta, corrida e caiaque em um único esforço. Suas duas viagens à Nova Zelândia realmente mudaram sua vida.
Uma vez que Sabbe evoluiu para um monstro do ultrarunning, buscar um FKT na Nova Zelândia parecia o próximo passo natural em sua jornada. Desde 2019, a ideia de correr toda a trilha Te Araroa estava em desenvolvimento. Mas a vida tinha outros planos. Entre outros compromissos e uma pandemia global, a aventura foi constantemente adiada. Ano após ano, a trilha chamava—mas ele teve que esperar. Até agora.
“Não há outro país onde passei tanto tempo—quase um ano inteiro no total. Então, chegar de volta a Auckland foi como voltar para casa”, diz Sabbe. “É um lugar que ainda significa muito para mim. Fui lá pela primeira vez por seis meses, durante aquele período da vida em que todos somos muito abertos, tentando descobrir o que queríamos fazer. E a Nova Zelândia ajudou a oferecer algumas respostas para essas questões”.
Mas quando Sabbe e sua equipe chegaram à Nova Zelândia, não havia tempo para nostalgia—nenhum espaço para olhar para trás. O relógio já estava correndo. Com uma programação cheia e um desafio enorme pela frente, o foco deles se voltou imediatamente para a tarefa à mão: correr, recuperar, repetir. O plano era simples, mas brutal—cobrir o máximo de terreno possível do amanhecer ao anoitecer, mirando quase 100 quilômetros por dia. Cada momento contava.

Sabbe se sentia confiante e pronto. Nos meses que antecederam a tentativa, ele seguiu seu ciclo de treinamento habitual — mesclando diferentes ritmos com alto volume de quilometragem para preparar o corpo para o desafio que viria.
“Sempre incluo trabalhos de velocidade e treinos intervalados alguns meses antes de tentar um recorde”, explica. “Começo com a intensidade mais alta primeiro — como intervalos de VO₂ máx, bem curtos — e depois passo para o treino de limiar, seguido de corridas em ritmo constante e treinos de resistência. O volume vai aumentando conforme a aventura se aproxima.”
Ao contrário do que muitos imaginam, o treino de velocidade ainda desempenha um papel essencial — mesmo quando se está se preparando para distâncias extremas que exigem resistência absurda. “O treino de velocidade é fundamental porque ele eleva o teto da minha resistência. Sem isso, eu estagnaria.”
O plano de treino de Sabbe não deixa espaço para o acaso. “Eu não sou um corredor profissional, então preciso ser muito eficiente no meu treinamento”, diz. “Por isso, monitorar minha frequência cardíaca durante os treinos intervalados é tão importante — isso me ajuda a extrair o máximo de cada sessão.”
A aventura começa
Com as pernas descansadas e a mente clara, Sabbe partiu às 5h da manhã do dia 16 de janeiro, do extremo norte da Nova Zelândia. À sua frente, se estendia todo o comprimento da trilha Te Araroa: 1.898 milhas (3.054 quilômetros). Sua linha de chegada? Uma placa solitária em Stirling Point, no ponto mais ao sul da Ilha Sul. Um longo caminho pela frente.
Como se tratava de uma tentativa de FKT com suporte, Karel contava com uma equipe de cinco pessoas cuidando de toda a logística — marcando o ritmo na trilha, controlando o cronograma, montando o acampamento e até lembrando-o de comer, beber e repor energia. Assim como em algumas de suas aventuras anteriores, sua equipe era formada por um pequeno e confiável grupo de amigos e familiares. Era um time unido — confiável, solidário e totalmente comprometido. Uma verdadeira equipe de família — viajando juntos em uma van amarela brilhante, carregada de lanches ricos em carboidratos, dezenas de rolos de papel higiênico e uma quantidade absurda de tênis de corrida.
“Para a minha equipe, era a primeira vez na Nova Zelândia, então fiquei orgulhoso de poder mostrar um lugar que significa tanto para mim”, lembra Sabbe. “O início da trilha é mágico — começa com um trecho de 80 quilômetros pela praia. É lindo correr ao lado do oceano, mas não há muito o que ver, o que, na verdade, me ajudou a focar no desafio que estava por vir. Eu estava simplesmente feliz por estar lá novamente, em mais uma aventura.”

Conforme as milhas avançavam, a praia infinita deu lugar a florestas úmidas e sombrias. Rios e riachos cortavam o caminho, exigindo travessias cuidadosas. A névoa cobria as colinas nas manhãs frias, e os primeiros sinais de fadiga — e as bolhas — começaram a aparecer. “Você sempre acaba com algumas bolhas quando corre ou faz trilhas na Nova Zelândia”, explica Sabbe. “Há muitos trechos de lama, muitas travessias de riachos — seus pés ficam molhados quase o tempo todo.”
Depois de 10 dias na trilha e mais de 600 milhas (1.000 quilômetros) percorridos, o desgaste físico começou a pesar. “O cansaço aparece cedo. Depois de uma semana correndo mais de 100 quilômetros por dia, você está completamente exausto”, admite Sabbe. “Você sente dor, mas não é uma dor aguda — então você continua.”
Nunca realmente sozinho
“O que esse belga maluco está fazendo por aqui?”, devem ter se perguntado alguns locais ao cruzarem com Sabbe. Mas a curiosidade logo se transformou em admiração — e, em pouco tempo, a notícia começou a se espalhar.
Os moradores receberam Karel e sua equipe de braços abertos, oferecendo desde lugares para dormir e banhos quentes até tortas caseiras, biscoitos e bolos — qualquer coisa para ajudá-lo a se reabastecer e seguir em frente.
“Foi incrível”, diz Sabbe, ainda surpreso com a recepção. “Nunca imaginei que seria assim. Milhares de pessoas acompanhavam meu rastreador e iam até a trilha para me apoiar. Os moradores estavam sempre lá para me incentivar ou correr um trecho comigo. Quando eu passava por vilas, havia crianças segurando cartazes coloridos dizendo ‘Go Karel!’. Outros até entravam em contato com minha equipe dizendo: ‘De acordo com o seu ritmo médio, vocês vão passar perto da nossa casa hoje à noite — venham ficar conosco! Podem montar a barraca no jardim, ou temos quartos prontos para vocês.’”
Foi algo inesperado, acolhedor e profundamente motivador. O que começou como uma missão solitária rapidamente se transformou em uma jornada compartilhada.
Mas um jovem em especial ficou marcado na memória de Sabbe ao longo do caminho. Seu nome era Charlie, e embora só pudesse se comunicar com o pai, acompanhava de perto o progresso de Karel.
“Charlie usa cadeira de rodas, então um dia, pouco antes do início de uma trilha, o pai o carregou nas costas e juntos correram comigo por um tempo”, lembra Sabbe. “Eles me contaram que todas as noites, às 19h30 — quando eu costumava parar — Charlie e o pai conferiam meu rastreador. Mantinham uma planilha com minhas estatísticas, e Charlie ficava empolgado acompanhando meu progresso e esperando me encontrar. Foi emocionante ver o quanto isso significava para ele — e, sinceramente, pensei em Charlie muitas vezes nos dias seguintes, até cruzar a linha de chegada.”
Ver como Charlie e o pai viviam a vida com tanta plenitude, apesar das limitações, foi profundamente inspirador — mesmo para alguém que estava correndo o comprimento inteiro da Nova Zelândia.

Rumo ao desconhecido
Depois de cruzar para a Ilha Sul, a jornada de Sabbe entrou em uma nova fase. A trilha ficou mais remota, o silêncio mais profundo e a sensação de isolamento, mais intensa. Embora as condições climáticas estivessem boas e grande parte do trajeto fosse “corrível”, o cansaço agora era um companheiro constante — e as bolhas já faziam parte da rotina diária. Em alguns trechos, a dificuldade era tamanha que completar 35 km levava até dez horas.
A essa altura, correr deixava de ser apenas um desafio físico e se tornava um jogo mental — um jogo que Sabbe aprendeu a amar. “Essa é uma das minhas forças”, ele diz. “Com o tempo, aprendi que posso continuar empurrando meus limites, mesmo exausto e com dor.”
“Eu realmente abracei essa oportunidade”, conta Karel. “Nem sempre temos chances assim — em toda a minha carreira de ultracorredor, só enfrentei cinco desafios desse nível. Então, eu me digo: tenho apenas um mês para correr assim. E isso me dá força para cavar fundo e explorar meus limites mentais de uma forma que a vida cotidiana não permite.”
A busca pelo recorde de velocidade adicionava outra camada de pressão. Sabbe não queria apenas completar a trilha — ele queria estabelecer uma marca que durasse anos. O cronograma era implacável, com pouquíssimo tempo para descanso, muito menos para relaxar. Não havia espaço para pausas longas ou desvios tranquilos.
“Eu só tenho um mês para fazer isso”, ele diz. “Isso cria momentos difíceis. No aniversário do meu filho, por exemplo, programamos apenas uma pausa de cinco minutos. Foi de partir o coração.”
Sabbe começou a prova confiante de que poderia estabelecer um novo FKT (Fastest Known Time). Embora o recorde anterior fosse impressionante, havia margem para superá-lo. Era um tempo de cinco anos atrás — e muita coisa mudou desde então no mundo da resistência extrema.
Logo nos primeiros dias, ele já se via bem à frente do ritmo previsto. “Eu conhecia bem a trilha e sabia que, se me esforçasse, poderia manter uma média de cerca de 100 quilômetros por dia”, diz Sabbe. “Então, desde o início, eu já estava significativamente à frente do recorde existente.”
Mas essa confiança não aliviou a pressão — na verdade, a tornou ainda maior. Sabbe não queria apenas bater o recorde, queria aniquilá-lo. Quando sua mente passa 16 horas por dia focada em um único pensamento — “corra, não pare, não fique para trás” —, não é surpresa que isso continue te perseguindo à noite. “Você não consegue o descanso que tanto espera”, admite. “Até o sono vira parte da luta. A partir da segunda ou terceira noite, o estresse começou a invadir meus sonhos. Comecei a ter pesadelos vívidos — perdendo encontros com amigos, saindo da trilha, ficando completamente perdido. Uma vez, sonhei que cheguei a um rio e o caiaque que deveria estar lá... não estava.”
A dor, a pressão, a rotina exaustiva — tudo chegou ao fim no momento em que Sabbe tocou o letreiro em Stirling Point. Esse toque solitário marcou o fim de uma jornada extraordinária: 3.054 quilômetros percorridos ao longo de toda a Nova Zelândia, completados em 31 dias, 19 horas e 41 minutos.
Tudo havia começado nas horas ainda escuras de uma manhã na Ilha Norte. Agora, um mês depois, ele estava no extremo sul da Ilha Sul — exausto, eufórico e completamente esgotado.
Seu corpo trazia as marcas do esforço, mas seu espírito estava nas alturas. Aquilo não era apenas uma linha de chegada — era a culminação de anos de sonho, meses de treino e milhares de momentos em que ele escolheu continuar.
Missão cumprida.

Movido pela aventura
Para Karel Sabbe, perseguir um FKT (Fastest Known Time) nunca é apenas uma corrida contra o relógio — é um passo em direção ao desconhecido. É sobre aventura.
E para ele, aventura não é uma palavra da moda — é algo profundamente pessoal. Algo de que ele precisa. Ele anseia por experiências que te arrancam da rotina e te obrigam a viver o momento em sua forma mais pura.
“Meu dia a dia é muito estruturado”, ele conta. “No trabalho, eu sei exatamente o que vai acontecer — atendo um paciente das 9h às 10h, depois outro das 10h às 10h30. Tudo é planejado. Mas aventura… é o oposto disso. É entrar em uma floresta que você nunca viu antes, caminhar em meio a uma tempestade, não saber o que vem pela frente — e ainda assim sorrir por causa disso.”
Para ele, a aventura vive no desconhecido. É acampar em lugares inexplorados. É atravessar rios e subir cumes cobertos de neblina, onde penhascos se escondem logo além da névoa. É sentir-se apenas incerto o suficiente para lembrar que está vivo.
“É aí que eu me inspiro”, ele diz. “É aí que tenho minhas melhores ideias. Quando estou lá fora, fazendo algo difícil e imprevisível, descubro coisas que nunca descobriria em casa. Isso é aventura para mim.”
Ele respeita o atletismo dos corredores que perseguem recordes de 24 horas em uma pista ou que completam voltas intermináveis em circuitos controlados — mas esse não é o lugar onde seu coração está.
“Isso não é aventura”, ele afirma. “É impressionante, claro. Mas, para mim, a verdadeira magia acontece quando você está lá fora, atravessando rios, subindo passagens desconhecidas e lidando com o que a natureza te oferece. É isso que me faz querer voltar sempre.”